por Mardonio Barros (Observatório da Indústria Cultural)
“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.”
(Walter Benjamin, Teses sobre o conceito da história)
Quando tive notícias do assassinato dos jovens Marcos Paulo da Silva Correia, Wellington Gonzaga da Costa, e David Wilson Florêncio da Silva fiquei tomado de uma revolta e de uma angústia, que se fundiam em uma tristeza advinda de um sentimento de impotência frente ao avanço da barbárie. Vivemos “em tempos (...) de sangrenta desorientação, de arbítrio planejado, de desordem induzida, de humanidade desumanizada[1]”, que nos exige estarmos alertas e prontos para combater a barbárie que nos embota o espírito. Esse crime nos mostra muito dessa realidade complexa que vivemos. Jovens mortos por outros jovens, em uma luta de todos contra todos, de pobres massacrados contra pobres massacrados, entre soldados desumanizados, de um lado os chamados “soldados do tráfico” e do outro (ou do mesmo) os soldados das forças do estado.
A entrega desses “garotos” ao tráfico é um arbítrio planejado, é uma desordem que induz os pobres eliminares os seus iguais. Assim seguem se devorando, pois estão tão alienados de sua espécie, quem nem se dão conta de que são alvo da mesma violência, e pelas mesmas razões. Essa reificação é um processo intrínseco ao modo de produção capitalista, ela nos leva a uma guerra de todos contra todos. Não podemos olhar a violência nos morros cariocas sem pensar na sua relação com o progresso, que é alardeado nos anúncios do Programa de Aceleração do Crescimento, ou em ações como o Cimento Social, de autoria do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). Da mesma forma em que não podemos olhar a barbárie que avança no mundo todo, em especial para a sua lógica nos países da periferia do capitalismo, e o papel dos países centrais nessa história. Essas realidades têm uma relação muito íntima. Quem está ganhando com o PAC? Quem ganha com a invasão no Iraque? E no Afeganistão? Ou com a suposta guerra contra o narcotráfico na Colômbia? Políticos, empreiteiras, mercado de armas e de segurança, especulação imobiliária, bancos, os latifundiários, indústria cultural (em especial a mídia), ONG’s.
Um bom exemplo dessa lógica do progresso como acumulação do capital e produção de barbárie é o Plano Colômbia, que contou com 1,30 bilhões de dólares de investimentos concedidos pelos Estados Unidos. Desse total, 1,13 bilhões foram gastos diretamente pelos funcionários de Washington, em suas fábricas de materiais bélicos, e sem a definição ou envolvimento do governo colombiano. O mesmo aconteceu com a quantia obtida pelo Banco Mundial para o plano, que foi canalizada por Washington para as sociedades militares privadas (SMP). Temos com esse Plano uma perseguição desenfreada do lucro, e não de resolver os graves problemas enfrentados pelos colombianos. Essa política alimenta os conflitos internos e o poder bélico das forças legais e das milícias que implementam a política de insegurança assumida pelo governo de Alvaro Uribe.
No caso da Providência os jovens foram entregues por soldados do Exército brasileiro que, até onde se sabe, tinham como argumentos para a acusação o fato de serem pobres, negros, e terem levantado a voz para reclamar das arbitrariedades dos “homens da lei”. Os militares os julgaram e delegaram a tarefa da execução a outros jovens da favela mais próxima, e de um comando diferente do que controla o tráfico no morro da Providência. Os que fizeram o serviço devem ter se utilizado para isso de armas fabricadas por indústrias de países “civilizados” e ricos como a Colt, que é estadunidense e fabricante do Fuzil AR15, a austríaca Glock, ou a Sig Sauer, que é resultado da fusão entre duas empresas, uma suíça e a outra alemã. Por que eles não fecham as fábricas de armas já que querem reduzir a violência? As armas não nascem nos morros, bem como as drogas. Os “soldados” do tráfico portam armas que são compradas por valores muito superiores aos que a maioria deles acumulará em suas breves vidas. Quem lucra com isso?
Países como os EUA e Alemanha são quem ganham dinheiro com o tráfico de drogas, e com o estado que também se arma com os materiais bélicos produzidos por suas indústrias. Essa lógica enriquece os capitalistas, e os países centrais, e leva policiais e civis à morte na periferia do capital. Enriquece também com isso a mídia cúmplice, que constrói diariamente as justificativas para essas políticas de morte. E o faz quando se nega a ouvir a voz dos de baixo, quando os coloca como criminosos, quando dão voz aos algozes dos que são assassinados todos os dias. Essa mídia também aperta o gatilho.
Vivemos em tempos estranhos, onde podemos encontrar nas ruas de uma cidade como Berlim um jovem dirigindo um carro com o que há de mais avançado na indústria automobilística, movido a álcool (energia supostamente limpa) produzido por trabalho escravo no nordeste do Brasil. Cada vez que olho para esse mundo, vejo mais razão nas palavras de Benjamin, não consigo olhar essa realidade sem horror, e nem seguir o cortejo triunfal dos vencedores, que segue marchando sobre “os corpos dos que estão prostrados no chão”.
Temos que nos contrapor à falácia dos defensores do capital, que tentam nos convencer a todo momento que o antídoto à barbárie é o capitalismo. Segundo eles, este deve chegar aonde não chegou, pois ele teria um caráter civilizatório. Não há salvação no capitalismo, que avança a passos largos destruindo o meio ambiente, vidas, sonhos.
É preciso nos levantarmos contra as injustiças, para que os que marcham sobre os corpos de Marcos, Wellington, David, e de tantos outros sejam vencidos, para que a justiça, os sonhos, liberdade e esperança caminhem triunfantes por esse mundo.
[1] Bertolt Brecht
Nenhum comentário:
Postar um comentário